domingo, 4 de março de 2012

Meu querido


Apesar do inverno estar castigando o solo europeu neste ano, resolvi enfrentá-lo, esperando logo mais o ressurgir da primavera. Por isso estou em Paris sob ventos gelados debaixo do mais puro céu azul. Esta cidade será sempre o meu refúgio. Nós nos pertencemos desde tempos imemoriais. Aqui vivi várias vidas, disso tenho certeza.
O meu espírito imaterializado viajou pelos mais variados estágios acompanhando a sua evolução. Eu e Paris temos afinidades tais, que uma está sempre com a outra. Somos um ser no outro ser, como soube tão bem dizer Simone de Beauvoir com relação a Sartre.
O maior paradoxo é que estou sempre, ou quase sempre só: eu e Paris. Cheguei a pouco e a manhã ainda está encoberta pelas brumas, mas o verde já se faz presente nas árvores, sinal de que em breve a estação das flores arrebentará. Vou para o Hotel Lutécia no Blv. Raspail, o meu preferido: é sóbrio e elegante como a cidade.
A mulher morna dos trópicos invade a silenciosa e fria manhã. Apesar de alguns anos acumulados, sou como o vinho: bem conservada. Ponho um mantô vermelho que rejuvenesce e dá brilho, esta é a cor da paixão. Tudo em mim se renova. Renasço todas as vezes que aqui chego.
O meu alumbramento é o mesmo de sempre. Vejo Paris com os olhos daqueles que amam com intensidade: a cada encontro é como se fosse à primeira vez. Eu e ela temos uma longa história de encontros e desencontros, alegrias e tristezas, amor e desamor.
Sigo sob o intenso frio e vou visitar os Jardins de Luxemburgo. Gosto de caminhar ao longo dos bulevares vendo pessoas estranhas, entrando nos cafés apressadas. Paro, e me detenho nos balcões onde os frutos do mar se exibem num apetitoso convite ao almoço. É cedo, prefiro me exercitar na caminhada.
Sou a mulher invisível, ninguém me conhece. Adoro este anonimato, sou a imagem dos meus sonhos. Chego aos jardins. Respiro fundo, o ar me renova a alma, rio e sou feliz. Acompanho os pássaros que voam ansiosos na espera que as flores arrebentem e eles possam sugar-lhe o néctar, como o seio da amada. Crianças brincam e correm. Velhos casais caminham de mãos dadas indiferentes às cinzas do tempo que lhes pincelam os cabelos de raios prateados.
Entro num café e peço uma taça de vinho rouge, acompanhada de pão e queijo. Descanso o corpo, enquanto o espírito volátil corre em busca das lembranças. Meus olhos seguem as copas verdes das árvores e lembro o mar da minha cidade. De repente, entristeço. Estou com saudades. Desejo um ombro amigo para chorar. As lágrimas rolam e misturam-se com o vinho.
Discretamente, passo as mãos pelo rosto. Gosto de escrever nos cafés quando viajo, é uma forma de conversar com o meu anjo, presença oculta que me acompanha sempre. Ele é fiel, discreto, conhece bem a mulher, suas angústias e saudades.
Enxugo as lágrimas e continuo a escrever esta carta endereçada ao vento. Quem sabe, um dia terei em Paris um amigo, um companheiro, com quem possa dividir o meu amor e a louca paixão que sinto por esta cidade. Paris, 2002.

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